Imagine encontrar um bilhete premiado no depósito de lixo. E depois torrar o dinheiro em festas e precisar voltar ao lixo para sobreviver. Pois isso aconteceu ao caxiense Adão Brum de Camargo, o personagem de hoje da série que revela as novidades sobre fatos publicados nos 46 anos de Zero Hora.
O lixo poderia manipular os cordéis de uma vida? Em julho de 1990, Adão Brum de Camargo achou um bilhete premiado da Sena entre nove toneladas de imundície, no aterro São Giácomo, em Caxias do Sul. Hoje, aos 58 anos, após ter dilapidado o que lhe parecia uma fortuna, sobrevive com a reciclagem de latas, papéis e plásticos.
Na manhã de uma quarta-feira cinzenta, Adão confere os fardos de material reciclado no pátio da casa de paredes sem reboco, no bairro Reolon, um dos mais pobres de Caxias. Desculpa-se por não apertar a mão do repórter e do fotógrafo, justifica que estão sujas devido ao manuseio do lixo – trabalha sem a proteção de luvas. Ele está preocupado, espera que a camioneta do freteiro chegue logo para transportar a mercadoria.
– Tenho de carregar isso antes que chova – diz, olhando para nuvens convulsionadas.
Adão recolhe o que os outros jogam fora para obter alguns trocados. A frente da morada está tomada de tonéis furados, sucata de fogões e geladeiras, portas de carros amassadas, sacas de lixo. Um quilo de plástico vale de R$ 0,95 a R$ 1,30. Garrafas pet, R$ 1. O mais precioso é o alumínio: R$ 2,30 o quilo. Dois cachorrinhos, mais simpáticos do que ferozes, zelam o patrimônio.
Quem vê Adão a juntar moedinhas para poder almoçar se surpreende com o passado de fartura dele – proporcionado pelo lixo que agora lhe mata a fome. No inverno de 1990, aconteceu um episódio que provocou delírios entre os caxienses. Algo que só o mais criativo dos roteiristas de cinema poderia inventar.
O inacreditável começou a surpreender quando o vidraceiro Pedro Luiz Rossi acertou o concurso 123 da Sena Posterior. No entanto, ao conferir os números, ele se atrapalhou, baseou-se no sorteio errado, acabou atirando o bilhete no lixo da cozinha, dentro de um saco plástico de supermercado. Ao ser avisado pelo dono da lotérica, o volante já viajava dentro do caminhão da coleta.
Pedro seguiu o caminhão, mas a febre por riqueza contagiou a cidade. Foi uma corrida atrás do ouro, como no Velho Oeste americano ou nos garimpos de Serra Pelada. Centenas de moradores passaram a vasculhar o aterro de São Giácomo. Vários feriram os dedos em cacos de vidro, mas não doeu.
Carteiro achava que grana jamais acabaria
Entre os garimpeiros que buscavam as seis pepitas sorteadas – 09, 21, 29, 37, 41 e 43 –, os mais encanzinados eram Adão e a mulher, Marilza Rodrigues. E foi ela quem descobriu o bilhete, intacto, apesar do pneu do caminhão do lixo ter passado por cima. Estava num embrulho de papéis, parcialmente soterrado no monturo.
Depois de rusgas e desacordos, Pedro e Adão agiram salomonicamente: cada um levou metade dos 15,9 milhões de cruzeiros – na época, o valor compraria oito salas comerciais em Caxias. Ao embolsar sua parte, Adão pensou que nadaria em piscinas de dinheiro, tal qual o Tio Patinhas. Enganou-se: se fosse hoje, a cota de cada um seria de R$ 368 mil.
A bolada é de saltar cifrões dos olhos (equivale a uma frota de 15 carros populares), mas não o bastante para se atirar nas cordas. Sobre isso, Adão não gosta de falar. Na quarta-feira chuvosa em que conversou com os repórteres de ZH, no bairro Reolon, admitiu a bobagem que fez ao se demitir do emprego de carteiro dos Correios.
– Foi uma grande burrada – lamenta.
Testemunhas dizem que Adão torrou o dinheiro em menos de três anos. Esbaldou-se em festas, caiu na lábia de oportunistas que prometiam negócios mirabolantes. O outro sortudo, o inicialmente azarado Pedro, aproveitou a segunda chance que teve ao reencontrar o bilhete. Manteve-se vidraceiro e aplicou como pôde a meia Sena.
Pedro emudece sobre o assunto, evita entrevistas. A reação de Adão é o constrangimento. Pesa-lhe recordar como desperdiçou a sorte grande sem ter apostado. Como foi dormir rico e acordou ainda mais pobre do que era.
– Foi humilhante... – arrepende-se.
Zero Hora.